quinta-feira, 31 de março de 2011

O Profeta Gentileza

Seguramente muitos do Rio se lembram daquela figura singular de cabelos longos, barbas brancas, vestindo uma bata alvíssima com apliques cheios de mensagens, com um estandarte na mão com muitos dizeres em vermelho, que a partir dos inícios de 1970 até a sua morte em 1996 percorria toda a cidade, viajava nas barcas Rio-Niterói, entrava nos trens e ônibus para fazer a sua pregação. A partir de 1980 encheu as 55 pilastras do viaduto do Caju, perto da rodoviária, com inscrições em verde-amarelo propondo sua crítica do mundo e sua alternativa ao mal-estar de nossa civilização. Não era louco como parecia, mas um profeta da têmpera dos profetas bíblicos como Amós ou Oséias.

Como todo profeta, sentiu também ele um chamamento divino que veio através de um acontecimento de grande densidade trágica:o incêndio do circo norte-americano em Niterói no dia 17 de dezembro de 1961 no qual foram calcinadas cerca de 400 pessoas. Era um empresário de transporte de cargas em Guadalupe e sentiu-se chamado para ser o consolador das famílias destas vítimas. Deixou tudo para trás e tomou um de seus caminhões e colocou sobre ele duas pipas de cem litros de vinho e lá junto às barcas em Niterói distribuía-o em pequenos copos de plástico dizendo:” quem quiser tomar vinho não precisa pagar nada, é só pedir por gentileza, é só dizer agradecido”.

De José da Trino, esse era seu nome, começou a se chamar José Agradecido ou Profeta Gentileza. Interpretou a queima do circo como um metáfora da queima do mundo assim como está organizado como um circo pelo “capeta-capital…que vende tudo, destrói tudo, destruindo a própria humanidade”. Segundo ele, devemos construir outro mundo a partir da Gentileza, o que ele fez em miniatura, transformando o local num belíssimo jardim, chamado “Paraiso Gentileza”. O quarto aplique de sua bata dizia:”Gentileza é o remédio de todos os males, amor e liberdade”. E fundamentava assim:”Deus-Pai é Gentileza que gera o Filho por Gentileza…Por isso, Gentileza gera Gentileza”. Ensinava com insistência: em lugar de “muito obrigado” devemos dizer “agradecido” e ao invés de “por favor” devemos usar “por gentileza” porque ninguém é obrigado a nada e devemos ser gentis uns para com os outros e relacionarmo-nos por amor e não por favor. Não é exatamente isso que o Rio de Janeiro está precisando?

A crítica da modernidade não é monopólio dos mestres do pensamento acadêmico como Freud com seu "O mal estar da civilização" ou a "Escola de Frankfurt", Horkheimer com seu "O eclipse da razão", Habermas com o seu "Conhecimento e interesse" ou mesmo toda a produção filosófica do Heidegger tardio. O Profeta Gentileza, representante do pensamento popular e cordial, chegou à mesma conclusão que aqueles mestres. Mas foi mais certeiro que eles ao propor a alternativa: a Gentileza como irradiação do cuidado e da ternura essencial. Esse paradigma tem mais chance de nos humanizar do que aquele que ardeu no circo de Niterói: o espírito de gentileza, o saber como poder e o poder como dominação sobre os outros e a natureza.

Texto de Leonardo Boff.

2 comentários:

Hélio Pariz disse...

Parabéns, mano Diego, por lembrar do profeta Gentileza!

Ele é, digamos, um dos meus "heróis" populares brasileiros favoritos, e por ter (bem) mais idade que você, eu me lembro quando ele aparecia na televisão e isso faz a gente sentir ainda mais falta da mensagem pura e simples que ele pregava. A concepção aparentemente simplória que ele tinha da geração eterna do Filho pelo Pai, imune a mistérios e elocubrações teológicas, é de uma delicadeza e ao mesmo tempo força que a gente não consegue gerar nem em nossos delírios intelectuais... rsrs

Esses profetas são tidos como "loucos", aliás o que não é muito diferente dos profetas bíblicos, e me lembro também de Antônio Bispo do Rosário, que mesmo tendo passado 50 anos internado num manicômio, produziu obras de arte magníficas, que eu tive oportunidade de ver por ocasião da Mostra dos 500 Anos do Descobrimento. Outra preciosidade brasileira e popular.

Fico muito feliz por ver que o teu blog homenageia o trabalho e a mensagem de gente como eles.

Abraços!

Lucas Stefano disse...

Uma pena que gênios assim se vão... é triste. Belo post.
Ele sem dúvida deixou atravéz de maneira simples, uma belíssima mensagem . Singular.