quarta-feira, 13 de julho de 2011

Uma Nobreza, que de Nobre Nada tem...

Por nobre, entendiam os antigos um herói, isto é, um homem distinto dos mais homens, e distinto por si, e não por outros; pelas suas próprias ações, e não pelas ações alheias. O heroísmo, e a nobreza, eram qualidades pessoais, e não hereditárias.
 
Estes e muitos outros pretendiam não menos nobre origem que a celeste, como descendentes dos deuses imortais; esta fábula não durou um dia só e admira-se que ela tivesse autoridade no conceito de homens polidos, sábios e prudentes, e, com tanta força que chegassem a fazer das fábulas, religião. Aquela foi a nobreza dos antigos, nobreza que tinha por princípio um engano introduzido e respeitado.

Desta sorte vem a nobreza a ser um meio por onde o vício se autoriza, o crime se justifica e a vaidade se fortalece. Cuidam os nobres, que a nobreza lhes permite tudo, mas cuidam mal, porque o certo é que a nobreza bem entendida não se fez para canonizar o erro.

Os efeitos da nobreza são muitos; ela dá merecimento, valor, saber, a quem não o tem; ela serve para fazer venerado a quem o não deve ser; ela faz que o crime fique muitas vezes impune; que a desordem se encubra, e se disfarce; que a soberba, a arrogância e a altivez, fiquem parecendo naturais e justas.

A história é uma das provas, com que a vaidade alega, e de que mais se serve na autenticidade da nobreza: prova incerta, duvidosa, fingida, e também algumas vezes falsa: nela se vêem muitos sucessos famosos, ações, combates, vitórias; muitos nomes a quem essas mesmas ações enobreceram, ilustraram. Mas, de quantas ações fará menção a história, que jamais se viram? De quantos sucessos, que nunca foram? De quantos combates, que nunca se deram? De quantas vitórias, que nunca se alcançaram? E de quantos nomes que nunca houveram? Não é fácil, que pelas narrações da história se possa descobrir a verdade dos sucessos; ela comummente se escreve, depois de terem passados alguns ou muitos séculos, de que se segue, que a mesma antiguidade é uma nuvem escura, e impenetrável, donde a verdade se perde, e esconde. Se a história se escreveu ainda em vida dos heróis, o temor, a inveja, a lisonja bastam para corromper, diminuir, ou acrescentar os fatos sucedidos: por isso já se disse, que para ser bom historiador, é necessário não ser de nenhuma religião, de nenhum país, de nenhum partido, de nenhuma profissão e mais que tudo, de preferência não ser homem.

Só para o homem estava guardado o serem distintos uns dos outros, e o distinguirem-se, não pelo valor de cada um, mas pelo valor das coisas que os distingue. A nobreza foi a maior máquina, que a vaidade dos homens inventou; máquina admirável, porque sendo grande, toda se compõe de nada. As outras vaidades, parece que são menos vãs, porque sempre têm algum objeto visível, mas por isso mesmo a vaidade da nobreza é uma vaidade sem remédio; mal incurável, porque se não vê.

Ainda a nobreza dos antigos tinha mais corpo, porque os ilustres iam buscar os seus ascendentes nos seus deuses e desta sorte ficavam os homens meio humanos e não inteiramente. Só assim podiam ser distintos, e desiguais na realidade. As distinções permaneceram, enquanto duraram as suposições da origem. Conheceu o mundo a impostura, e logo os deuses se acabaram, deixando os seus descendentes, feitos homens como os outros, e, com a circunstância, que por haverem tido progenitores altos, ficaram sem nenhum. Depois daquela catástrofe fatal, parece que devia extinguir-se a vaidade da nobreza, mas não foi assim, porque aquela vaidade só mudou de espécie, e o engano, de figura; a mitologia converteu-se em genealogia, humanizou-se. A igualdade sempre foi para os homens uma coisa insuportável, por isso entraram a forjar novos artifícios com que se distinguissem, e ficassem desiguais; e não tendo já deuses donde tirassem o princípio da nobreza, entraram a tirá-la de outras muitas vaidades juntas, compuseram uma nobreza toda humana, então nasceu aquela tal nobreza, como parto do poder e da riqueza.

Deixemos finalmente o sangue em paz, todo o seu trabalho é para ser sangue, e não para ser este ou aquele sangue; de que serve a arte de introduzir naquele líquido admirável, qualidades arbitrárias e civis, se a verdade é que ele só tem as qualidades naturais? Para que fazer ao sangue, autor daquilo, de que só é autor a vaidade?

Retirado do livro de Matias Aires da Silva de Eça, "Reflexões sobre a vaidade dos homens".

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