Não raros estudiosos perceberam um certo caráter anárquico na fé cristã. Amiúde, muitos marxistas tentaram tachar Jesus como sendo o precursor do pensamento comunista – rejeitando, no entanto, sua divindade.
De fato, a postura social adotada por Cristo e seus discípulos, marcada por um total despojamento das coisas materiais, e o conceito de hierarquia ensinado por ele chamam a nossa atenção.
Os relatos de Lucas, no livro de Atos dos Apóstolos, revelam que os primeiros cristãos tinham tudo em comum, vendiam seus bens e repartiam com os mais necessitados e os próprios discípulos não são tratados como liderança a partir da perspectiva atual. Aliás, a palavra líder, tão corriqueira no mundo corporativo e também nas igrejas, não é notada nem nos Evangelhos nem nas Epístolas Apostólicas.
Entrementes, os séculos se passaram e as igrejas hodiernas não se assemelham (nem de longe) com o anarquismo nem tampouco com o comunismo. Ao contrário, líderes governam a partir de pequenos impérios e o ethos capitalista dita o ritmo da vida comunitária entre os cristãos.
Para resistir aos rótulos, é importante afirmar que de fato Jesus não tinha ligação nenhuma com as duas linhas ideológicas aqui mencionadas, ele anunciou e viveu algo muito maior: o Reino de Deus!
A respeito da hierarquia do Reino, ele mesmo deixou claro que:
"Vós, porém, não queirais ser chamados mestres, porque um só é o vosso Mestre, a saber, o Cristo, e todos vós sois irmãos. E a ninguém na terra chameis vosso pai, porque um só é o vosso Pai, o qual está nos céus. Nem vos chameis mestres, porque um só é o vosso Mestre, que é o Cristo. O maior dentre vós será vosso servo." (Mt 23. 8-11)
Uma interpretação errônea do que o escritor sagrado diz a respeito dos dons na igreja teria justificado a instituição de cargos eclesiásticos, a partir dos quais pessoas lideram outras pessoas nas comunidades de fé. Quando se diz que “ele mesmo deu uns para apóstolos, e outros para profetas, e outros para evangelistas, e outros para pastores e doutores, querendo o aperfeiçoamento dos santos, para a obra do ministério, para edificação do corpo de Cristo” (Ef 4. 11-12), não se está legitimando aqui poder ou autoridade a qualquer pessoa, tida como especial, a fim de que domine sobre os irmãos.
A respeito de qualquer dom mencionado no Novo Testamento, é importante reconhecer que se tratam de funções a serem exercidas, tarefas, responsabilidades e não cargos a serem ocupados. Essa compreensão do que de fato dizem as cartas apostólicas serve tanto para contrapor àqueles que se valem de interpretações manipuladoras a fim de se tornarem líderes supremos entre os cristãos, quanto àqueles que alegam que os discípulos (principalmente Paulo) teriam deturpado os ensinamentos de Jesus. Obviamente, nem uma coisa nem outra!
No que tange à administração de bens materiais, não vemos Jesus legislando de forma rigorosa acerca do tema. Pode-se dizer apenas que, por haver amor verdadeiro e sincero, os cristãos se sentiram comovidos a doar e partilhar aquilo que possuíam. Assim, os necessitados dentre os irmãos tiveram suas necessidades satisfeitas. Foi algo totalmente livre, gerado pelo constrangimento vindo do próprio Espírito Santo.
Ao contrário do comunismo, que se instalaria pela ditadura do proletariado, a mordomia cristã se concretiza pelo quebrantamento da comunidade de fé diante dos mais carentes.
Diante disso tudo, é curioso olhar para as igrejas e verificar um sem-número de práticas e dogmas absolutamente estranhos à mensagem do Evangelho. A divisão clero-laicado, a sacralização do local de culto (chamando-o erroneamente de casa de Deus), a exigibilidade do dízimo como garantia de saúde financeira, entre outras coisas mais, não comungam com o pensamento e práxis dos crentes da igreja primitiva.
Daí fica a pergunta: e se levássemos a mensagem e a vida de Jesus a sério, como estariam as igrejas?
Por: Humberto Ramos
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